1. Anatomia de um crime

“O
texto tá finalizado. Se tiver 5 curtidas e 2 comentários, vai ser
muito. Pelo menos ninguém pode reclamar que o Papo de Homem não puxa
casca de ferida.”
Foi assim que apresentei ao Jader, meu editor no Papo de Homem, o artigo “
A vida tem sentido?“.
E eu estava sendo franco em relação à baixa expectativa de
curtidas/comentários, afinal, o que podia esperar de um texto que fala
do sentido da vida sem pretensões religiosas e sob a perspectiva de um
personagem
neurastênico?
Por isso fiquei incrédulo quando, na manhã da publicação, recebi uma mensagem do Jader avisando que o texto estava bombando
nos comentários.
Mais
ainda, eu não estava preparado para a excelência daquelas conversas.
Foi uma polifonia de testemunhos e referências, em que se harmonizaram
vários instrumentos e ritmos. De metal sinfônico à MPB; de
curta-metragens à cenas de longa-metragens; de citações de mestres
orientais à confissões de romancistas russos: todos convergentes na
formação de uma visão única, embora plural, sobre o sentido da vida
humana.
Mas algo que me incomodou, por estarem absolutamente certos, foram os comentários de
Vinicius Domenes e
Frederico Vilela.
Segundo eles, faltou, ao final do texto, uma proposta de sentido da
vida. A verdade é que assumi a posição confortável de não me expor e,
por outro lado, não me sentia a vontade com nenhuma das propostas
apresentadas usualmente, principalmente pelas religiões, a respeito do
tema.
Ocorre que, após ver a excelência de todos aqueles comentários,
não havia mais desculpas — a busca por uma proposição do sentido da
vida havia se tornado uma atividade coletiva com todos os leitores que
participaram.
Como o seriado
True Detective,
que inspirou o texto, os comentários tornaram-se uma verdadeira
investigação. Mas não uma averiguação criminal, e sim uma busca por
pistas que possam desvendar outro tipo de delito: aquele que nos privou
do sentimento de integração com o universo, de completude com o mundo
circundante, aquele que nos faz perguntar se a vida tem um sentido.
2. A cena do crime

Começamos por
Sergiuss, um dos comentadores/investigadores que, para comprometer-se unicamente com a verdade, decidiu permanecer anônimo.
Ele descreveu a cena do crime de forma quase poética:
“A
maior angústia do homem origina-se no seu inconformismo, por ter sido
compelido a uma condição artificial, distante da natureza, mãe que o
gerou incapaz.
Como sempre acontece na seleção natural, esse ser
imperfeito foi desprezado, e seus instintos exigiram incomumente do seu
cérebro, para que encontrasse formas de subsistir, mesmo agindo contra
suas origens. Perdido e hostilizado, devia evitar o próprio meio onde
nasceu. Mas como, sem se frustrar, sem ódio de si mesmo?
Nesta
ambiguidade existencialista, fez surgir o bem e o mal, descobriu a
dialética, o amor e o ódio, o domínio e a submissão, deuses e demônios,
agressão e carinho. E ainda agora se debate melancolicamente entre
artificialismos delirantes e a simplicidade do que realmente quer.
Sua
imaginação voa, pois não tem asas. Seus sentimentos o sustentam, pois
não tem garras. Caminha pelos confusos labirintos do existencialismo,
porque não tem patas hábeis.
No entanto, sua consciência mais íntima
sabe em qual sentido ir, pois deseja ardentemente depor as armas que a
engenhosidade do seu cérebro construiu e voltar para casa. Ele deseja
voltar para a natureza, tal qual o filho pródigo que sua nostalgia
inventou, e desfrutar, finalmente em paz, do paraíso, de onde foi
expulso.”
Segundo relata, a humanidade tornou-se uma espécie
anômala, pois dotada de um excesso de consciência que a diferencia das
demais (ainda que já esteja provada a presença de consciência em outros
animais).
Deixando de se identificar com a natureza, a vítima sentiu como se fosse rejeitada pelo próprio mundo – como um verdadeiro
desviante do reino animal.
E
reagiu a essa situação inventando um outro mundo, fora da natureza,
povoado de anjos e demônios; um universo fantástico que desse conta de
seu excesso de consciência, de seu anseio pela imortalidade.
Para
Sergiuss,
a solução seria o retorno à natureza. Afinal, no fundo, nossa briga é
justo essa: como na lenda de Adão e Eva, fomos expulsos do paraíso
natural da irreflexão, da atenção total ao momento presente, da
integração ecológica com os outros animais, e a esse paraíso queremos
voltar nem que seja na marra.
Essa é, na verdade, a primeira pista que encontramos na investigação.
Mas
isso é possível? Podemos retornar àquela sensação de eterno presente na
qual vivem os outros animais? Podemos retornar àquele sentimento de
pertencimento, de integração com a natureza?
Bom, se imaginamos esse
retorno como um projeto de abandonarmos as cidades e irmos viver nas
florestas e savanas, ou nos unirmos em comunidades hippies sem energia
elétrica, provavelmente não. Mas há uma outra forma de retornarmos a
natureza, desde que compreendamos exatamente o que a natureza quer da
gente.
Porém, antes de analisarmos essa questão, continuemos com a investigação.
3. A Vítima e seu depoimento

A vítima é a própria condição humana. Todos nós, de alguma forma, somos afetados pelo questionamento sobre o sentido da vida.
Testemunhando em nome de todos, uma das vítimas preferiu o anonimato.
Loyal Freckes assim depôs a respeito dos fatos ocorridos:
“Comecei
a fazer essas perguntas difíceis para tentar encontrar um sentido no
roteiro criado para as nossas vidas, e decidi que a melhor coisa que eu
deveria fazer era rasgar o roteiro e tentar encontrar meu próprio
caminho.
Não foi fácil perceber minha própria ignorância em relação à
vida e à realidade que me cerca. Descobrir que meu ego sequestrou minha
consciência e vem mentindo para mim durante toda minha vida. Isso quase
me levou à depressão. Para uma pessoa que sempre buscou ferozmente a
estabilidade, sentir na pele que todas as estruturas criadas pelos seres
humanos são inerentemente instáveis e eventualmente cairão é
desesperador.”
Essa é a regra em nossa sociedade:
herdeiros das escolhas de nossos antepassados,
fomos ensinados a empurrar para debaixo do tapete todas as verdades
incômodas a respeito de nossa condição. Contudo, tais verdades
acumulam-se a ponto de se tornarem um monturo maior do que o próprio
tapete. Em algum momento, nosso projeto de negação falha.
É quando somos vítimas de depressão, de ansiedade, de transtornos compulsivos ou de ataques do pânico.
São manobras desesperadas e emergenciais de nossa mente, quando ela
pressente que está diante de um conjunto de verdades que é superior a
sua capacidade de assimilação e aceitação.
Muitos, a seguir, buscam
socorro em medicamentos que aplacam os sintomas mas deixam intocadas a
causa original, o crime perpetrado contra a condição humana.
4. O principal suspeito e seu interrogatório

O
principal suspeito é o homem moderno. Seu interrogatório ficou ao
encargo de Wanessa Achkar, que colheu o depoimento e gravou as palavras
do indiciado para posterior análise. No curta metragem
(ENTRE), roteirizado por Wanessa e dirigido e produzido por ela e Carlos César, o suspeito apresenta sua versão dos fatos.
São 14 minutos e 30 segundos de um visceral depoimento. Imperdível:
Link YouTube
5. O que encontraram os policiais
Cristhyano de Paula
foi o primeiro a chegar na cena do crime. Como policial acostumado a
ver tais atrocidades no seu dia a dia, ele adota a postura sóbria e
pessimista de todo aquele conhece a natureza humana e sua propensão para
o mal:
“A evolução é um emaranhado de acertos e erros
onde as circunstâncias para sua ascensão, no caso dos seres humanos, não
funciona mais da mesma forma que na natureza. Afinal, ninguém precisa
ser o mais rápido, o mais forte ou ter três braços para sobreviver.
O
que presenciamos atualmente é que a distração é algo em constante e
rápido crescimento. Nós nem estamos mais negando a realidade,
simplesmente a ofuscamos totalmente. Não há como negar algo que, para
nós, não existe.
Então, de certa forma, não estamos fazendo uma
“seleção natural” de nós mesmos? Não seria sempre um passo a frente e
dois para trás?
Não querendo soar arrogante, mas é tarefa impossível.
Pegue um texto sobre futebol e um texto como esse, onde a massa vai se
deliciar mais?
Como evoluir em um coletivo que continua puxando tudo
pra trás e se deliciando com isso? É como ficar de mão dadas com um
grupo de pessoas que ficam te puxando enquanto você tenta seguir em
frente.
Você tem duas opções. Ou se solta do bolo e segue sozinho ou acaba sendo arrastado com eles.
Então
arrisco dizer que a consciência humana atual está nesse ponto entre o
primata e o superior ao atual, mas não vejo como ela, coletivamente,
consiga sair disso.”
Em uma coisa Cristhytano tem total razão:
não há uma lei universal que determine o progresso humano,
não há nada que justifique um “pensamento mágico” a respeito de nosso
futuro, como a crença de que alguma força metafísica venha a jogar os
dados do destino trapaceando-os a nosso favor. Somos nós, são nossas
escolhas coletivas e individuais, que determinarão se o nosso futuro
será uma distopia ou uma utopia.
E é tão delicada a situação que não
temos o direito de ser pessimistas. Pois se a situação é péssima, o
pessimismo só garantirá, pela omissão, que ela piore. Logo, justamente
sob a ótica do pessimismo, um grande esforço otimista é exigido para
que, no mínimo, as coisas não piorem, para que permaneçam como estão.
Conforme a receita de
Noberto Bobbio, convém que pensemos como pessimistas, para antevermos os obstáculos adiante com lucidez, mas que atuemos como otimistas.
6. O que as interceptações telefônicas registraram

Os comentadores
Pedro Paulo e
Vinícius Marçall
foram responsáveis pelos grampos durante as investigações. Graças a
eles, o leitor pode escolher dois tipos distintos de diálogos musicais
capturados durante a interceptação telefônica.
O primeiro é o de Pedro Paulo. Segundo nosso investigador, a música “
The Phantom Agony“,
da banda de metal sinfônico Epica, resume os anseios e agonias de nossa
existência, com uma melodia e harmonia muito bem trabalhadas.
Link YouTubePedi
ao Paulo uma transcrição da gravação ambiental, e o seguinte trecho da
letra composta por Mark Jansen e Yves Huts chamou minha atenção, por
traduzir com exatidão o crime que estamos investigando:
“O ancestral desenvolvimento da consciência
Afastou-nos da essência da vida.
Pensamos tanto que nossos instintos
Desvanecerão, eles desvanecerão.”
Mas
se o leitor prefere algo menos grandioso e sinfônico, o investigador
Vinícius Marçall apresentou outra captura ambiental, em que Caetano
Veloso, poeticamente, faz a pergunta que algo em todos nós continuamente
faz:
“Existirmos: a que será que se destina?”
Link YouTube
7. A testemunha ocular

O investigador
Diego Santos colheu o depoimento da testemunha ocular Schlomo, prestado no ótimo filme
Trem da Vida (
Train de Vie):
Além
do saboroso humor da interpretação final que os dois homens fazem das
palavras de Schlomo, há algo de verdadeiro na frase “o homem criou Deus
para conseguir se inventar”. E entenda-se por “Deus” qualquer
referencial de uma totalidade integradora que possamos conceber.
Link YouTubeAinda
tratarei disso com mais detalhes num texto futuro. Mas, por ora, basta
registrar que, independentemente da questão sobre se alguma divindade
existe fora do homem, Deus, enquanto referencial de totalidade, “existe”
ao menos dentro de nossas mentes, como um conceito a partir do qual
podermos nos compreender enquanto seres humanos.
Em outras palavras,
ainda que Deus não exista, a ideia de Deus, a ideia de que algo
totalizante seja capaz de unir o finito ao infinito, conferindo sentido a
vida humana, existe dentro de nós, como forma de referenciarmos nossa
identidade em relação ao mundo.
Claro, é possível vivermos sem um
referencial de totalidade, sem mirarmos num horizonte maior que nossas
vidas finitas e supormos que nossos atos individuais integram um todo
maior. Porém, isso não afasta o fato de que negar a validade interna da
ideia de Deus é dar mais um passo na direção da angústia existencial.
Temos
aí, graças a descoberta de um de nossos investigadores, mais uma pista
das duas já encontradas, e que podem solucionar o mistério desse crime: a
necessidade de retornarmos à natureza e a necessidade de vivermos para
além de nós, considerando nossos atos e nossas vidas segundo a ideia de
algo que sirva como referencial transcendente de totalidade e de
integração de nossas individualidades com o mundo, até mesmo com o
universo.
8 – O corpo de delito

Nosso legista
Vitor Torga Lobardi
identificou e descreveu a ferida causada na vítima: ela é pura carne
viva, absolutamente exposta, sem qualquer pele ou outro tecido a
recobrindo, deixando o coração da vítima totalmente desprotegido. Mas,
surpreendentemente, essa ferida produz, além de dor, também ternura. E
ela própria é o caminho para a salvação da vítima e recuperação do
próprio criminoso.
Mas que tipo de ferida é essa, que é caminho e
resposta? No relatório pericial, Vitor Torga transcreveu as palavras do
especialista Chögyam Trungpa, mestre de uma das minhas autoras budistas
prediletas, a Pema Chodron:
“Quando acordamos desse modo o
nosso coração, descobrimos com surpresa que ele está vazio. Temos a
impressão de olhar o espaço sideral. O que somos nós? Quem somos nós?
Onde está nosso coração?
Se olharmos com atenção, nada veremos de
tangível ou sólido. Claro, é possível encontrar algo muito sólido, se
tivermos rancor contra alguém ou se estivermos possessivamente
apaixonados. Esse, porém, não é um coração desperto. Se procuramos o
coração desperto, se colocamos a mão no peito para senti-lo, nada
encontramos – a não ser ternura.
Sentimo-nos doloridos e ternos, e se
abrimos os olhos para o mundo, reconhecemos em nós uma profunda
tristeza. Uma tristeza que não vem de termos sido maltratados. Não
estamos tristes porque nos insultaram ou porque nos consideramos pobres.
Não. Essa experiência de tristeza é incondicional. Ela se manifesta
porque nosso coração está absolutamente exposto.
Nenhuma pele ou
tecido o recobre – é pura carne viva. Mesmo que nele pousasse apenas um
mosquito, nós nos sentiríamos terrivelmente tocados. Nossa experiência é
crua; nossa experiência é terna e absolutamente pessoal.
O autêntico
coração da tristeza provém da sensação de que o nosso inexistente
coração está repleto. Estaríamos prontos para derramar o sangue desse
coração, prontos para oferecê-lo aos outros. Para um guerreiro, é a
experiência do coração triste e terno que dá origem ao destemor, à
coragem.
Convencionalmente “ser destemido” significa não ter medo,
significa revidar um murro, dar o troco. Aqui, entretanto, não estamos
falando do destemor das brigas de rua. O verdadeiro destemor é produto
da ternura e sobrevém quando deixamos o mundo roçar nosso coração, nosso
belo e despido coração.
Estamos dispostos a nos abrir, sem resistência ou timidez, e a encarar o mundo. Estamos dispostos a compartilhar nosso coração.”
Segundo
nosso perito, a ferida produzida pelo crime não é um mal, mas um antes
uma solução, um caminho na direção do destemor. Ela é nosso próprio
coração desperto e sensível, que tentamos proteger temendo que o mundo o
machuque, que tentamos esconder receando que seja interpretado como um
sinal de fragilidade.
Mas, ao contrário, expor nosso coração ao mundo
é um ato de coragem, é o pressuposto para olharmos a condição humana de
forma amorosa.
Apenas a compaixão por nós mesmos e pelos outros seres,
apenas a capacidade de compreendermos ternamente, amorosamente, que
todos nós, humanos e não-humanos, comungamos da mesma experiência
dolorosa neste mundo de impermanência, apenas isso é o que nos permitirá
prosseguir na busca por um despertar não individual, mas coletivo, de
nossas consciências. A consciência com coração desperto: essa é a
terceira pista de nossa investigação.
9 – O que dizem os precedentes judiciais
Lucas Valadão Xavier indicou um precedente sobre caso semelhante, elaborado por ninguém menos que
Liev Tolstói.
Aos
50 anos, Tolstói decidiu ponderar sobre o sentido da vida. Estamos
falando de um homem não só extraordinariamente inteligente e experiente,
mas de um artista que, naquela idade, já conhecera a fama e a admiração
de seu povo, escrevera obras fundamentais para a literatura universal,
constituíra uma família sólida com esposa e 14 filhos e que, ainda por
cima, estava livre de grandes preocupações financeiras.
Não estamos,
em resumo, falando de alguém sem autoridade, cuja opinião podemos
descartar com um punhado de frases prontas, sem cometermos o pecado da
leviandade.
Caindo em crise emocional, Tolstói registrou em um pequeno livro, o
Uma Confissão, todas as fases de sua angústia e de seu questionamento a respeito do sentido da vida (a versão em inglês pode ser
lida aqui). Podemos, claro, pular todas as idas e voltas de suas reflexões (há um
resumo aqui) e chegar a sua conclusão final:
o que dá sentido à vida é a fé, mas não necessariamente a fé em um Deus.
“Olhando
os povos de outras terras, meus contemporâneos e seus predecessores, eu
sempre via a mesma coisa. Onde quer que exista vida, ali a fé desde o
princípio fez a vida possível ao homem, e as linhas principais dessa fé
são sempre e em qualquer lugar idênticas.
Seja o que for a fé, e
sejam quais forem as repostas que ela possa dar, e a quem ela as dá,
suas respostas atribuem à existência finita de um homem um sentido
infinito, um sentido que não é destruído por sofrimentos, privações ou
morte. Isso significa que apenas na fé nós podemos encontrar um
significado e uma possibilidade para a vida.
O que, então, é a fé? Do
modo como compreendo, fé não é só a “a crença em coisas que não vemos”,
não é uma revelação (que define apenas uma das indicações da fé), não é
a relação do homem com Deus (alguém precisa primeiro definir “fé” e
depois “Deus”, e não o contrário), não é apenas a aceitação do que foi
dito por outra pessoa (como supostamente costuma ser), fé é um
conhecimento do significado da vida humana em consequência do qual o ser
humano não se destrói, mas vive; fé é a força da vida.
Se um ser
humano vive, ele acredita em algo. Se ele não acredita que se deve viver
por alguma coisa, ele não consegue viver. Se ele não vê e reconhece a
natureza ilusória do finito, ele acredita no finto; se ele compreende a
natureza ilusória do finito, ele deve acreditar no infinito. Sem fé, um
homem não pode viver.”
Até agora, conseguimos quatro pistas
para desvendar esse mistério. O ser humano, desenraizado da natureza,
necessita reconciliar-se com ela. Precisa também encontrar uma forma de
viver mirando em um horizonte que vá além de sua própria vida, por meio
de um referencial de totalidade representativo da ideia de Deus.
Nesse
caminho, ele não pode esconder de si mesmo a sua verdadeira condição
finita e frágil: ele tem de expor seu coração, jamais ocultá-lo, até
chegar a um coração desperto. Por fim, encontramos a quarta pista: a fé,
enquanto conhecimento de que a vida tem ou precisa ter um significado
que transcenda a finitude de nossa individualidade.
Mas ainda falta
um elemento que concretize essas pistas e forme uma solução para nossa
investigação. Dito em outras palavras: como nos reconciliarmos com a
natureza e em que referencial de totalidade podemos depositar a nossa
fé? Como fazer isso com o coração desperto, isto é, sem nos protegermos
em crenças que ocultem nossa fragilidade e finitude?
10 – A última peça do quebra-cabeça

Quem nos dá a peça final desse quebra-cabeças sãos os leitores
Ygor e
Marcelo. O primeiro comentou:
“O
sentido da vida, ou propósito melhor dizendo (já que o sentido ou o
real significado é continuo, assim como a evolução) é, desde a criação
do universo, a autoconsciência. Pense no Universo como uma flor. O
polinizador dessa flor é a consciência, da espécie e do individuo.”
Já
o Marcelo apresentou a segunda parte da solução do enigma (se por
“altruísmo” podemos entender a compaixão de um coração desperto, que não
se fecha, mas se abre a um objetivo maior do que o indivíduo):
“(…)
sou uma pessoa que achava que o altruísmo genuíno não existia, que até
quando doamos ao próximo é para nos sentirmos melhores, mas se importar
com a evolução da sociedade e tentar fazer parte disso, sabendo que
vamos morrer e que nem poderemos desfrutar disso, por mais que tenhamos
(ou não) filhos, me parece um altruísmo muito genuíno, porque essa
necessidade que tu comentaste só é nossa porque nos importamos com
isso.”
A proposição pode ser apresentada, assim, de forma
simples e direta: somos parte da natureza, e ela caminha no sentido de
tornar-se consciente de si própria, como se a natureza fosse um grande
organismo e estivéssemos encarregados de constituir, através da evolução
de uma sociedade formada por corações despertos, essa consciência
coletiva que, em última instância, seria a consciência da própria
natureza sobre si mesma e sobre o universo circundante.
Um sentido
possível para a vida individual seria a adesão a esse sentido coletivo,
aceitando que a natureza caminha a milênios na direção da formação de
uma consciência coletiva — e que nossa “missão” é a efetiva
implementação desse projeto, de forma a nos tornamos o instrumento
através do qual a natureza adquire autoconsciência. Correndo o risco de
ser um pouco mais ousado, seríamos também os polinizadores dessa
consciência para além do planeta Terra.
Mas, é claro, essa proposição pode ser verdadeira ou não. Pode ser, em suma, só uma ideia, sem respaldo nos fatos.
A favor de sua veracidade, há algumas evidências. O
biólogo James Shapiro demonstrou
que as bactérias, as formas mais primitivas de vida e organismos
unicelulares e que acreditávamos viver de forma isolada, tendem a formar
coletividades espontaneamente. Como fazem isso é algo que permaneceu um
mistério até que os biólogos
V. Norris e G. J. Hyland descobriram que a comunicação entre as bactérias ocorre
por meio de campos eletromagnéticos.
Esse
sistema de comunicação forma uma verdadeira rede de inteligência
coletiva que permite aos organismos unicelulares sobreviverem
comunitariamente. É algo muito primitivo, mas que se supõe estar
presente já nas primeiras formas de vida que apareceram na Terra, como
propõe o pesquisador
Eshel Ben Jacob, em relação aos primeiros organismos formados nos
estromatólitos da
era pré-cambriana:
um movimento para a emergência de redes de comunicação cooperativas, formando coletividades.
E os biólogos evolucionários
William Hamilton e
David Sloan Wilson, o primatologista
Hans Kummer e o zoólogo
Vero C. Wynne-Edwards,
são alguns dos nomes que acreditam que a seleção natural se move no
sentido da sobrevivência da coletividade e não do indivíduo.
É como
se a natureza operasse de forma a unir indivíduos em sistemas cada vez
maiores e mais complexos. É como se todos nós estivéssemos programados
para realizar essa finalidade, enquanto membros da raça humana, por meio
do mais ancestral recurso inventado pela natureza: a comunicação.
E, em relação a comunicação humana, o biólogo molecular
Joël de Rosnay, o doutor em física teórica
Gottfried Mayer-Kress, o especialista em evolução da inteligência
Francis Heylighen, o cientista de computação e cibernética
Valentin Tuchin e o divulgador científico
Howard Bloom,
todos eles especulam se o desenvolvimento da internet não estaria
fazendo emergir em uma forma de consciência coletiva. Há, inclusive um
instituto formado por uma comunidade internacional de cientistas e
pesquisadores, o
Global Brain Institute, destinado compreender esse fenômeno.
Atender
a esse chamado da natureza, direcionando nossos projetos de vida
individual ao trabalho coletivo de criarmos uma sociedade que se
transforme na consciência da natureza, pode nos restituir aquele
sentimento de completude e de pertencimento que a sociedade moderna,
fragmentária e individualista, obstaculiza.
E essa proposição, além
de verdadeira, pode ser genuíno ainda em dois sentidos. Em um primeiro, a
busca pela consciência coletiva pode ser um “movimento cego da
natureza” — como o movimento cego que fazem os cupins africanos
construírem gigantescas e elaboradas obras de engenharia (eles não sabem
o que estão fazendo, mas um impulso instintivo faz com que construam
edifícios formidáveis). Nesse caso, apenas estamos obedecendo a uma
programação que, embora poderosa, é desprovida de intencionalidade.
Contudo,
em um segundo sentido podemos supor que esse movimento tem uma origem
voluntária: Deus ou alguma supraconsciência equivalente incutiu, nos
organismos vivos e, particularmente, naqueles dotados de consciência
individual, que se organizem e façam emergir, após milhões de anos de
evolução, uma consciência coletiva.
Afinal, aquela
proposição inicial pode ser formulada da seguinte forma: o universo
caminha no sentido de tornar-se consciente de si próprio, como se ele
mesmo fosse uma grande entidade e estivéssemos encarregados de
constituir, através de nossa sociedade, a consciência coletiva que, em
última instância, é a consciência do universo.
Essa ideia não é nada estranha aos leitores de ficção científica:
O Fim da Infância, um dos livros mais célebres do renomado autor de Sci-fi
Arthur C. Clarke (roteirista de
2001, Uma Odisseia no Espaço) trata exatamente desse tema.
Mas nada disso pode ser verdade. Tudo pode ser apenas o que o livro de Arthur C. Clarke é: mera ficção.
Mas
é justo nesse caso que a fé da qual falava Tolstói mostra-se mais
importante. Lembre-se de que tal fé não consiste em aceitar como verdade
algo dito por alguém ou a existência de algo que não podemos ver, mas
em aceitarmos que precisamos confiar em alguma coisa que possa
transcender a nossa individualidade e que nos permita viver.
Portanto,
ainda que aquela proposição não seja verdadeira (e a natureza não
caminhe para a emergência de sua consciência através de nós), ainda
assim parece interessante que a consideremos como um projeto a ser
criado e implementado pela humanidade.
Como disse Tolstói, “para
viver, um ser humano precisa ser capaz ou de ignorar o infinito ou de
encontrar uma explicação para o sentido da vida que conecte o finito ao
infinito”. Ou seja, precisa atuar em sua vida individual e finita tendo
em vista um objetivo que transcenda essa individualidade e finitude.
E
tal fé, que não pode estar baseada em considerações individuais mas
deve mirar num objetivo que una toda a coletividade, torna convidativa a
ideia de que adotemos, como referencial de totalidade, um objetivo
comum a realizar, ainda que o consideremos como criado por nós, como
resultado da inventividade humana, e não como algo preexistente.
Resumindo
as pistas encontradas nessa investigação, o sentido coletivo da vida é
depositarmos a nossa fé num referencial de totalidade consistente na
emergência de uma consciência coletiva, composta por corações despertos,
de modo a prosseguirmos intencionalmente e organizadamente com um
processo que, até agora, parece ser um movimento desintencional, mas
poderoso, da natureza.
Como lembrou o escritor
Alan Moore,
os antigos alquimistas tinham um princípio, chamado “solve et coagula”.
Para eles, o processo de desenvolvimento passava dualisticamente por
períodos de “solve” (fragmentação da sociedade, individualização,
especialização, separação) e outro de “coagula” (unificação, integração,
harmonização dos elementos separados). A sociedade moderna culminou uma
grande fase de “solve”: países separados, religiões rivais,
conhecimentos especializados, individualismo exarcebado – várias formas
de fragmentação do espírito humano, tempo de partidos e de homens
partidos.
Talvez esse sentido coletivo para nossas vidas possa
inaugurar uma nova etapa do desenvolvimento humano, com nossos esforços
individuais voltados para uma mesma meta que transcende nossas
individualidades, nossas famílias, nossos países. E, quem sabe, possamos
compreender, então, que há um significado mais profundo naquilo que o
psicólogo
C. G. Jung escreveu, quando tentou resumir o sentido da vida humana em uma única frase:
“Até onde podemos perceber, o único propósito da vida humana é acender uma luz nas trevas do mero existir”.